sábado, 23 de abril de 2016

Fecha a porta ao sair.

Você saiu e esqueceu de fechar a porta. 
Você saiu e deixou suas coisas espalhadas pelo apartamento. 
Deixou palavras soltas e indecifráveis. 
Deixou copos sujos de cachaça, taças sujas de vinho. 
Deixou dúvidas e indagações. 
Levou minhas certezas e deixou memórias doloridas no chão da sala. 
Deixou teu cheiro impregnado na cama. Os lençóis bagunçados.
Deixou a comida com sabor amargo e coração azedo. 
Deixou janelas abertas e o vento frio das lembranças me acorda todas as noites e tira o sono, único amigo além da cachaça ao lado da cama quando os pesadelos de tua presença ao meu lado vem junto do sereno. 
Levou sonhos, as esperanças, o sopro de vida, cuja falta me deixou encolhida no tapete do chão do quarto. Aquele que te fiz comprar. Ouviste e bagunçaste todos os meus discos. 

Você saiu e esqueceu de fechar a porta. 
A sala já está empestada de poeira da memória impregnada nos móveis, nos porta retratos. 

Você saiu e deixou a porta aberta. 
E como fechar a porta se levaste a chave?

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

A mosca e o perfume.

Hoje, acidentalmente, peguei seu perfume, aquele que você esqueceu aqui em casa, para matar uma mosca.
Ela fugiu, mas teu cheiro incensou o quarto.
Mandei uma mensagem de oi no celular, você não respondeu, mas tudo bem.
Faz tempo que você não responde.
Faz tempo que a gente não conversa e faz tempo que eu não te vejo.
Mas faz alguns dias que eu percebi que - finalmente - está tudo em seu devido lugar.

Te mandei uma carta - ora, mas que demodê - junto com um convite. Disse que estava tudo bem e que esperava o mesmo pra ti.
"A maldade do tempo me fez me afastar de você".
A maldade da vida nos fez nos afastar.
Mas - pelo tanto que sofremos - está tudo bem.
Finalmente. Está tudo bem.

Teu cheiro engarrafado não dói mais.


sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Sabonete Senador.

Tocou a campanhia já imaginando que ele estivesse dormindo.
PRÊÊM.
Tocou mais uma vez.
PRÊÊM.
Foi quando ouviu um ruído e passos se dirigindo até a porta. Ele surgiu pela fresta aberta com o olhar sonolento.
- Amor...!
Ela entrou, abraçou-o e não soltou mais.
- O que houve?
- Nada. – Ela respondeu, segurando o choro na garganta.
- Estou preocupado.
Ela permaneceu calada, querendo sentir apenas seu corpo agarrado ao dele para pensar estar mais segura. Mas como estar mais segura se todos os problemas que estava sentindo se originavam exatamente de sua mente?
- Vem, vou escovar os dentes e você me fala o que foi.
No caminho para o banheiro, ela foi contando e chorando. Mais uma vez, ele tentou acalmá-la de tudo aquilo. Ela sabia que poderia estar exagerando. Mas por que sentia que não? Abraçou-o mais uma vez e a cada aperto, o choro parecia aumentar. Estava soluçando, inconsolável.
- Vamos fazer assim: a gente toma um banho junto e vamos almoçar. Que tal?
E quando ele tentou desabotoar sua blusa, ela voltou ao choro incontrolável. Creio que foram 30 minutos para tentar acalmá-la e tirar sua roupa. Abraçou-a novamente, só que dessa vez debaixo do chuveiro. 5 segundos depois, ela desligou e disse:
- Está faltando água em São Paulo.

Ele sorriu e ela voltou a chorar. O dia de apenas seis horas havia sido difícil, ainda teria de trabalhar e seus hormônios militantes da TPM estavam mais fervorosos que os eleitores do PSDB e PT em brigas nas ruas nas últimas semanas. Mas, por alguma razão, não sabia a qual, e apesar da angústia no coração, ela sabia que ele estava certo. Tudo estava bem.

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

Réquiem.

Quando estava triste, gostava de dirigir.
Mas naquela noite, além da tristeza, havia medo. Medo do que poderia acontecer, do que estava por vir.
Depois de tomar uma garrafa de vinho, chorando aos prantos na areia da praia, colocou Mozart no som do carro.
Sabia que a vida era feita de decisões. De erros. E aquilo estava a matando por dentro. Todos os passos em falso. Todas as dúvidas.
Não sabia que aquela sinfonia havia sido escrita no leito de morte do músico austríaco.
Também não sabia que ao dirigir por mais de 120km/h, com aquela sinfonia alta a invadir seus ouvidos, o seu leito de morte já havia sido construído. Colidiu com o poste. Morreu na hora.


Disseram que quando tiraram o corpo do que restou do carro, seus olhos inchados de tanto choro, aparentavam finalmente, a paz que ela queria em vida.

domingo, 8 de junho de 2014

Shame.

Bebeu metade do vinho, derrubou um pouco do que restara na garrafa e encheu a taça com as últimas gotas do vinho chileno que ganhara dele.
Depois de ter assistido a série que tanto gostava, bebeu o resto do líquido roxo de calcinha e sutiã no sofá.
Estava pensando. O que estava acontecendo com sua vida?
Só tinha certeza de uma coisa: não sabia mais de nada.
Por toda sua vida, teve certeza das coisas. Mas agora, a única certeza que tinha, era que aquela taça, a sua frente, acabaria em alguns minutos.
Era verdade: gostaria de transar agora.  Mas tinha mais vontade de estar sozinha.
Porque era assim que se sentia nos últimos anos.
Apesar de tudo, estava sozinha. E só tomou conta disso nos últimos meses.
Estava sendo idiota? Não sabia.
Estava sendo paciente demais e deixando sua vida escorrer de suas mãos? Não sabia, mesmo se inclinando para a resposta afirmativa.
Nunca mais tinha se sentido desejada até receber o email de um desconhecido dizendo que gostaria de transar com ela.
Sim. Por mais estranho que isso tenha sido, ela tinha se sentido especial. De um jeito que há tempos não se sentia.
‘We’re not bad people’.
Acabou a garrafa de vinho.
Deitou na cama.
Chorou.
Dormiu esperando um novo dia.

Um dia. Mais um dia.

quarta-feira, 30 de abril de 2014

Lady Grey.

Ela segurou o choro todo o caminho. Diante do céu nublado, seus olhos estavam em igual situação: escondendo, em pesadas nuvens, uma tempestade. Desceu no ponto. Sempre tinha dúvidas de quando puxar a cordinha. Desceu. Atravessou a rua correndo, sem nem olhar pros lados. Quase foi atropelada. Não estava sentindo nada. Entrou no prédio, aguardou o aval do porteiro para subir.
- 505, por favor.
Entrou no elevador e ao ficar sozinha naquele cubículo, se vendo no espelho, a garganta já começava a fechar, aquela agonia que se sente antes do desespero. A porta abriu, saiu e ao olhar pro lado ele estava lá, sorrindo. Correu e o abraçou. E foi quando toda aquela tempestade dentro da alma caiu pelos olhos, soluçando, como uma comporta d’água que se abre.
- Vai ficar tudo bem.
- Não, não vai.
- Claro que vai. Por que não ficaria?
- Porque eu não mereço.
- Quem disse que você não merece?
- Eu. Eu não mereço tudo isso.
- E por que não? Deixe de pensar isso. Aconteceu. Não há como ter controle de tudo.
- Por que não? Por que eu não posso ter controle das coisas?
- É a vida. Não há como ter certeza de tudo.
- Tudo parece estar tão distante. Nada, nada está ao meu alcance. Nada.
- Algumas coisas estão.
- Como o quê?
- A vontade e a coragem de mudar.
Ela parou. E ele continuou:
- E meu beijo e uma xícara de chá.
Ela sorriu, com aqueles olhos grandes de tanto ter chorado.
- Lady Grey? Com leite? – Ele perguntou.

- Sim, mas sem leite e com limão – ela respondeu sentindo toda a tempestade esvair-se de seu corpo por estar ali com ele. Sorriu, como nunca mais tinha sorrido antes. Estava segura.

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

To the valley below.

Ele acordou, olhou para o lado e viu apenas o travesseiro. Estendeu o braço para pegar sua camisa na cadeira, mas não mais se encontrava lá. E da brecha da porta entreaberta, ouviu o zumbir da chaleira com água fervente. Ao sair do quarto, deparou-se com ela, vestindo sua camisa xadrez de flanela e aquela calcinha azul que chamou sua atenção desde o momento em que a viu vestindo-a. Parou para observá-la passando o café e sentiu o aroma do grão recém moído.

- Te acordei? - Ela perguntou sem tirar os olhos daquela coisa estranha na qual ela fazia o melhor café que já tinha tomado na vida. Talvez não fosse o melhor... Mas era o que ela tinha feito.

- Não. 

- É que eu não estava encontrando a chaleira, daí fiquei procurando e acho que estava fazendo barulho, mas acabou que...

Ele a beijou.

- ... encontrei. - Ela segurou o sorriso. - Seu café. 

- Obrigado, querida. - Tomou um gole e beijou-a. Aquele beijo quente. Doce. - Está muito bom.

Ela sorriu. - 'brigada. Podemos voltar a ficar embaixo do edredom agora?

Ele riu. - Claro.

- Vendo desenho animado? E comendo brownie?

- Podemos.

E debaixo do edredom, ele confortou os pés nas pernas dela, quentes como aquele café na xícara.